quinta-feira, 9 de abril de 2015

GRACILIANO RAMOS, A RELIGIÃO E EU


Graciliano Ramos era ateu. Todo mundo sabia disso em Palmeira dos Índios, e mesmo assim ele foi eleito prefeito. O melhor amigo dele era o padre. E, viúvo, a sua segunda esposa foi Heloísa, a sobrinha do padre. Ah, que sorte do Velho Graça não sofrer no sertão, nos anos 1920, os preconceitos que sofremos nós nas cidades grandes quase 100 anos depois!
Muitos ateus sonham com um mundo sem religião. Eu não sonho porque não consigo imaginar como ele seria, pois todas as civilizações até hoje tiveram a religião como elemento constituinte. Há mesmo ideias que não podem ser expressas sem um componente religioso. Imagina falar de Mozart. Você vai dizer que ele desde cedo mostrou seu dom para a música? Mas "dom" é algo que alguém dá. Quem deu? Deus? Então ele tinha talento? Confira a parábola dos talentos no cap. 25 do Evangelho de Mateus. E a palavra "aptidão", embora laica, é muito pobre para ser usada num texto sobre as habilidades de Mozart.
Na sua obra mais importante, "Vidas Secas", Graciliano mostra uma família tão miserável que nem sequer conseguia se comunicar direito. No momento em que o Brasil se industrializava, aqueles miseráveis viviam na Idade da Pedra, sem nem mesmo terem desenvolvido plenamente a capacidade comunicativa. A miséria os privava de serem plenamente humanos. Acho que esse romance é excelente para se falar de Pré-História e Evolução. (Não acha, David Ayrolla?)
Pois bem, no capítulo "Festa", aquela pobre família sai do fim de mundo onde vive -- ou vegeta -- e vai a uma festa de Natal, sem que, em momento algum, se fale no nome de Cristo (tal como os Flintstones comemoram o Natal antes de Cristo), não se fala em Deus. Eles apenas comem e bebem e se veem em meio a outros seres da mesma espécie, pois, nós, símios, somos seres sociais, ao contrário das tartarugas e dos tigres solitários. "Religião" significa "religar" e o ateu Graciliano mostra seus personagens se religando não a Deus, mas a outros indivíduos de carne e osso.
Por isso, não chega a ser de todo mentira quando nos acusam de estar transformando o ateísmo em religião quando promovemos encontros. Nós nos ligamos uns aos outros, nos juntamos por nossas afinidades. Religião sem liturgia nem dogmas, como na festa à qual os viventes de Alagoas comparecem. Estendemos a toalha, sentamo-nos na relva e comemos, sem falar do que nos possa dividir -- as disputas políticas, as rivalidades esportivas etc. É melhor falar do que possa nos unir: a necessidade de sairmos do armário e nos assumirmos ateus para melhor combatermos o preconceito e defendermos a liberdade de consciência e o Estado laico.
Creio que sempre seremos minoria, mas precisamos defender nosso direito de sermos o que somos.

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