quarta-feira, 11 de março de 2015

SÓCRATES X DOSTOIÉVSKI


No Congresso de Ateus em Seropédica, alguém me fez a pergunta sobre a moral ateia. E repetiu a frase de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido". O que eu achava disso?

Lembrei que a frase está no romance "Crime e Castigo", um dos melhores romances já escritos até hoje. Recomendo a leitura.

Dostoiévski foi um cara revolucionário, inovador, na juventude. Mas foi preso por ter lido um texto proibido contra o czar. Condenado a ficar preso na Sibéria, sob um regime de trabalhos forçados, poderia ter morrido de frio como muitos prisioneiros. No caminho, o trem fez uma parada e um grupo de missionárias entregou aos prisioneiros comida, agasalhos e bíblias. Disse um amigo meu que é pastor, quando lhe contei a história: "Se não tivessem dado a comida e os agasalhos, as bíblias não funcionariam." Na prisão, leu todo o novo Testamento e se converteu. Defendeu apaixonadamente as posições da Igreja Ortodoxa Russa, ao contrário de seu contemporâneo cristão e anarquista León Tolstói, que morreu excomungado em 1910.

Dostoiévski mostra o que há de pior na alma humana. Seus personagens vivem num pântano de crime, vício e pecado e de lá só podem sair pela graça divina. Dostoiévski defendia que o homem não pode se regenerar a não ser pela intervenção da graça divina.

Mas a resposta para o desafio de Dostoiévski, feito no século XIX, foi dada muito antes: 400 anos antes de Cristo.

Na obra "Eutífron", Platão "reconstitui" (Como, sem gravador nem estenografia?, como questionou Saramago) um diálogo entre Sócrates e Eutífron. Sócrates pede a Eutífron que seja sua testemunha de defesa no julgamento e Eutífron diz que já está ocupado. Estava indo denunciar o próprio pai. Sócrates argumenta que ele não deveria fazer isso, pois, mesmo que seu pai tivesse cometido um erro, ele, como filho, lhe devia lealdade. Eutífron diz que segue o exemplo dos deuses, pois Zeus enfrentou Cronos. E Sócrates pergunta: "Uma coisa é boa porque aprovada pelos deuses ou é aprovada pelos deuses porque é boa?" Se é aprovada pelos deuses porque é boa, a coisa é boa em si mesma e não precisa da aprovação deles. Mas se algo é bom porque aprovado pelos deuses, os deuses podem aprovar algo que nosso senso moral reprova.

Quer melhor exemplo disso que o caso de Abraão? Todos nós ficamos horrorizados quando ele se dispõe a sacrificar o filho porque Deus assim lhe ordenara. Só a censura religiosa nos inibe de demonstrar nosso escândalo.

Agora vá você, profissional do teatro, encenar "Ifigênia em Áulis", de Eurípides. Para que os ventos levem os navios até Troia, onde os gregos farão a grande guerra, a deusa Ártemis exige que o rei Agamêmnon sacrifique a filha Efigênia. E ele a mata no altar. A plateia se horrorizará sem censura.

Quando conheci a história de Agamêmnon, logo a associei à de Abraão. Escrevi uns dois poemas comparando os dois personagens, que estão contidos no meu livro eletrônico "Doce Inverno de Ouro Preto". Se alguém tiver uns trocados para financiar a poesia desse professor herege e mal pago, pode procurar a obra no site Amazon.

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