domingo, 11 de janeiro de 2015

Por que sou um liberal? - por Sergio Viula



Por que sou um liberal?

Por Sergio Viula


A palavra liberal vem do latim liber, ou seja, livre ou não-escravo,  e me seduz tanto em conotação como em sonoridade. Não há conceito mais belo do que o da liberdade – o que não neutraliza a angústia que dela advém (vide Sartre). Mas, numa semana em que três assassinos ajudaram a renovar os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – e inaugurando minhas postagens como CDC (criador de conteúdo) da ARCA, acho que vale a pena refletir sobre liberdade e esclarecer porque sou um liberal.


Mas o que é liberalismo, afinal?


Posto de modo bem simplificado, liberalismo é uma filosofia política ou visão do mundo fundada sobre ideais que pretendem ser os da liberdade e da igualdade, mas ser um liberal não significa exatamente a mesma coisa para todos os que assim se denominam. Mantenhamos em mente, para melhor compreensão desse artigo, que os indivíduos liberais geralmente apoiam ideias como eleições democráticas, direitos civis, liberdade de imprensa, liberdade de religião, livre comércio e propriedade privada.


Todavia, antes que alguém se precipite acreditando ser um liberal quem simplesmente adote um ou mais desses pontos-de-vista, é preciso que se diga que uma pessoa pode defender o livre comércio e a propriedade privada e ser um conservador. Não é preciso pensar muito: George Bush, um dos piores presidentes americanos, defendia a propriedade privada e o livre comércio (desde que na terra alheia, porque ele mesmo estabeleceu várias restrições a produtos estrangeiros na terra do Tio Sam), mas era um conservador da pior espécie, inclusive se contrapondo à igualdade plena de grupos minoritários com os do mainstream americano.


Aqui, outra digressão se faz importante. Nos Estados Unidos, as pessoas tendem a pensar em liberalismo exatamente como o oposto do que se pensa em quase toda parte no mundo. Muitos americanos entendem o liberalismo como a atuação de um governo intervencionista que só faz ampliar seu espectro de poder e a capacidade de tomar decisões centralizadas. Será que Bush entendeu tudo errado e, querendo ser um liberal, seguiu esse fake de liberalismo made in the USA? É bem provável.



Toda coerção tem que ser racionalmente justificada


Quando digo que sou um liberal, quero dizer que todo poder coercitivo exercido pelo Estado e pelas mais diversas instituições deve ser justificado. Para haver veto a uma ação, é preciso que haja uma justificativa racional, norteada pelos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade. E aqui vale evocar o diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo I:


Art. I - Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.


E mesmo quando se faz necessária a punição decorrente da desobediência a algum desses vetos, essa punição deve obedecer aos princípios já explicitados naquele artigo e colocados ainda mais claramente no artigo 5:


Art. V - Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.


Uma rápida olhada em nosso sistema prisional já mostra como estamos longe desse ideal ainda. Pessoalmente, fico perplexo quando pessoas que se consideram esclarecidas – nem sempre tanto quanto pensam – defendem exatamente o contrário, inclusive a pena de morte. Nada mais longe dos princípios humanistas. O que salta aos olhos quando isso acontece é o fato de que o obscurantismo e o fanatismo podem se transfigurar até em anjo de luz. A pessoa deixa o templo, mas carrega a doutrina aparentando outras razões para preservá-la que não as religiosas.  



Igualdade e correção de injustiças



Outra coisa que considero fundamental, e os liberais também, é o Estado de direito, ou seja, a aplicação política da igualdade perante a lei. E nesse sentido, gostaria de destacar o que dizem os artigos 6 e 7  da Declaração Universal dos Direitos Humanos:


Art. VI - Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.


Art. VII - Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.


Vale destacar que o simples fato de assumirmos esses valores como algo digno de preservação, de observação, não garante sua aplicação à vida cotidiana. Em outras palavras, as injustiças já instaladas no seio da sociedade não serão corrigidas por meio de mantras ou palavras mágicas. Geralmente, se faz necessário dar um tratamento específico às injustiças que, devido aos processos históricos de cada nação ou região dentro delas, foram se naturalizando e se tornando parte do status quo. Daí, a necessidade de leis que combatam o racismo, a xenofobia, a homofobia, a transfobia, a violência contra a mulher, a violência contra a criança e o adolescente, e assim por diante. Cada uma dessas violações dos direitos civis pode ser “justificada” por tradições, convenções, vícios de pensamento e de linguagem, mas não resistem ao escrutínio da razão acostumada à liberdade. Por isso, precisam ser problematizadas e tratadas com clareza e objetividade. Tradições geralmente agem como álibis para as atitudes mais desumanas e irracionais que a humanidade já desenvolveu e perpetuam essas mesmas crueldades ad infinitum.


Um bom exemplo é o próprio conceito de raça. É um hábito pensar que há várias raças de humanos, quando os humanos são, na verdade, A raça. O restante pode ser etnia, cor de pele, tipo de cabelo, mas a raça é simplesmente humana, que em palavras melhores seria simplesmente espécie humana. Então, a própria ideia de raça superior ou inferior é uma construção absurda, racionalmente injustificável e socialmente destrutiva. Para combater os efeitos práticos dessa ideia equivocada, torna-se necessária a criação de leis anti-racismo. Não basta dizer que somos todos iguais se a sociedade teima em agir como se fôssemos diferentes em valor e dignidade. Por isso, o legislador enfrenta o problema que aí está com os instrumentos da lei. E é a lei que legitimará a ação do policial, do juiz e do carcereiro. Qualquer prisão ou condenação arbitrária poderá, graças ao próprio sistema legal, ser questionada e revogada.


O raciocínio é semelhante para toda e qualquer correção de injustiças, não somente os casos de racismo.



Propriedade privada e uso do corpo



Um liberal defende o direito à propriedade privada. O uso de um bem é direito exclusivo de seu possuidor. Ele pode desfrutar livremente do que lhe pertence, vender alugar, doar, modificar, enfim, dispor dele como bem entender, desde que não viole os direitos de outras pessoas. Claro, pois o fato de ser dono de um tanque cheio de gasolina, por exemplo, não me dá o direito de descarta-la toda no primeiro bueiro que eu encontrar na rua. A gasolina é minha e eu posso fazer dela o que eu bem entender, desde que não infrinja os direitos alheios. No caso dessa ilustração hipotética, eu colocaria a vida de toda a comunidade em risco de uma explosão, o meio-ambiente seria gravemente contaminado, podendo gerar perdas irreparáveis para vidas humanas e não-humanas.


É por adotar o princípio de que posso dispor do que pertence como bem entender, desde que não viole os direitos alheios, que não admito que governos, religiões, partidos políticos e outras agremiações ou mesmo pessoas, individualmente, interfiram sobre o que o indivíduo faz de seu corpo – desde uma simples tatuagem até o uso dos prazeres.


Por isso, defendo as liberdades sexuais, o direito à reprodução assistida, o direito à contracepção, o direito ao aborto (nos três primeiros meses de gestação – fase em que não há qualquer sinal do sistema neural do feto), a eutanásia, o casamento igualitário, profissionalização da prostituição (feminina e masculina), a legalização das drogas e o aborto nos três primeiros meses de gestação (fase em que não há qualquer sinal do sistema neural).


Aqui alguns sentirão os comichões do pensamento tradicional, conservador, brotarem das entranhas. Claro, muita bobagem já foi associada aos termos aqui colocados e esse corolário de ideias viciadas pela cosmovisão judaico-cristã que constitui o pensamento de muitos, inclusive dos que negam que assim lhes aconteça.  Entretanto, tudo isso está relacionado ao direito do indivíduo fazer de si o que bem entender. Isso, porém, não impede que se eduquem as pessoas para evitarem o que possa lhes causar dano, como é o caso do uso de entorpecentes.


Também não se confunda a prostituição praticada sem coerção, ou seja, como autonomia, com aquela submetida à cafetinagem.  O ato de explorar outras pessoas para a prostituição deve continuar a ser crime, porque viola os direitos da pessoa. Agora, regulamentar essa atividade como uma profissão faz exatamente o oposto – protege a pessoa que por decisão própria quiser se dedicar a essa atividade.



Livre mercado e responsabilidade social



Isso levanta outra questão interessante: o livre mercado.


O fato de ser livre não significa ser inconsequente. Uma marca famosa de tênis do Ocidente ir buscar mão de obra mais barata em outro país é legítimo. Agora, se aproveitar da vulnerabilidade de certas populações para fazê-las trabalhar em regime escravagista ou semelhante deve ser sempre considerado um crime com a aplicação de punições rígidas aos infratores e reparação às vítimas.


Penso que o livre mercado já nos trouxe muitos ganhos, mas a irresponsabilidade e a ganância irrestrita já nos trouxeram muitos prejuízos. O equilíbrio é encontrado quando os governantes e as sociedades que os elegem trabalham em conjunto para o bem comum.


Pode parecer fora de propósito por se tratar de livre mercado, mas a produção científica também enfrenta um sério desafio: como produzir conhecimento sem ser condicionada pelas leis de mercado. Um exemplo simples, mas suficientemente ilustrativo: uma doença acomete 100 mil pessoas no mundo. É possível criar-se um antídoto ou vacina, mas a lógica de mercado diz que não é financeiramente interessante investir nisso. Seria justo que essas pessoas continuassem sofrendo por causa dessa lógica estritamente comercial, mesmo sendo possível interromper sua dor e dar-lhes melhor qualidade de vida, ou o governo deveria criar meios para que os cientistas desenvolvessem o remédio ou a vacina para distribuição a esses cidadãos que, além de sua dignidade intrínseca como seres humanos e pessoas de direito, teoricamente pagam impostos e/ou colaboram de outras maneiras para a manutenção da sociedade em que estão inseridas? Esse é só um dos muitos dilemas que estão postos diante de nós.


Gosto de pensar os governos como mediadores em situações de crise e viabilizadores de relações que resultem em bem estar social. Podemos dizer que algum Estado ou governo são literal e totalmente liberais no mundo de hoje? Não. Mas podemos ver que aqueles com maior teor de liberalismo oferecem meios de realização pessoal e justiça social muito mais eficazes do que seus contrários. Basta comparar França, Suíça, Suécia, Holanda, Bélgica, Noruega, e outros semelhantes aos conservadores Irã, Egito, Nigéria, Rússia, Vietnã, Cuba e por aí vai.


E aqui talvez seja interessante destacar um fato interessante: a Guerra Fria, com tudo o que foi desprezível nela, também produziu um efeito positivo. É muito provável que os Estados de Bem-Estar Social não tivessem surgido na Europa, pelo menos não naquele momento, se os capitalistas do centro-norte da Europa não tivessem sentido seu domínio ameaçado pelo pensamento marxista que já seduzia o Leste Europeu. O pragmatismo dos donos do capital, não seu altruísmo pessoal, é claro, conduziu à distribuição da riqueza de seus países de um modo mais justo, proporcionando benefícios sociais aos trabalhadores, aposentados, estudantes e idosos, resultando na qualidade de vida que vemos naqueles países até hoje. Vencida a ameaça comunista que vinha da ex-URSS, isso também começa a arrefecer, abrandar, enfraquecer.


No Brasil, enfrentamos um momento em que reacionários tentam inviabilizar o projeto progressista, humanista, secularista, enfim, o sonho liberal. São pessoas que não percebem como e quanto continuam ecoando as vozes de deuses mortos, tradições mofadas, ideologias totalitárias e castradoras, mesmo tendo deixado os templos. Alguns nem isso fizeram – continuam lá dentro, servindo fielmente aos dogmas. Quando se trata de uma pessoa ateia, isso é ainda mais grave, porque se as luzes que há nela são trevas, quão densas são tais trevas.


Grande parte disso se deve à falta de conhecimento, de reflexão e também a uma espécie de comportamento de rebanho: um diz uma coisa absurda, o outro curte, depois reproduz, e começa a ficar escravo desses compromissos com o grupo que já estava formado quando ele chegou ou que vai se formando a partir dessas interações. Começa a haver uma espécie de expectativa de que se aja sempre de determinada maneira (conservadora), que se reaja contra certas ideias (liberais), mesmo não entendo o que elas significam de fato.


E, como eu disse: o que me preocupa mais não são os religiosos turrões, fanáticos, fundamentalistas, extremistas, cheirando à vela ou com a cara enfiada numa Bíblia. Não. Conservadores desse tipo não são novidade alguma. O que me incomoda é que o fermento do conservadorismo anda levedando a massa de alguns ateus por aí. E boa parte deles não percebe isso. Pior: quando têm a oportunidade de se debruçar seriamente sobre esses temas alguns preferem adotar aquela postura “zoeira” que faz tudo parecer muito simples e engraçado, mas não muda coisa alguma. É como alguém que viaja por uma estrada deserta e quando o pneu do carro fura, ele sai e faz uma dancinha engraçada, dizendo “pronto, zoei!”, mas o pneu continua furado.


Bem, as razões porque sou um liberal estão aí. Pelo menos, algumas delas. Espero que sejam suficientes para inspirar mais alguns a se emanciparem do conservadorismo castrador, essa neurose que engravida ou é que parida por outra neurose: deus! - difícil saber o segredo de Tostines. Alguns ateus e agnósticos repetem o mantra de que ele morreu, mas continuam carregando o cadáver como se algo do sagrado ainda precisasse ser preservado, mesmo que à custa do racional e de valores dos quais não podemos prescindir jamais, quais sejam, a liberdade, a igualdade e a fraternidade.





* Sergio Viula foi pastor batista, é formado em filosofia, administrador do blog Fora do Armário www.foradoarmario.net, autor de Em Busca de Mim Mesmo, livro que fala sobre religião, sexualidade e ateísmo, Criador de Conteúdo da ARCA, e pode ser encontrado no Facebook em: https://www.facebook.com/sergio.viula




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